8/12/2024

Catarina Fonseca nas "Onda da Poesia" - Transparece

 


Sublinha-te, muda o traço ou a cor, mas não te inclines demasiado. No mínimo, é uma questão de estilo.

Há dias ( contando também as horas em que os dias se chamam noite) em que precisamos de acrescentar algo. No mínimo, transparência, e quando falo de transparência não me refiro a comandos, teclas ou botões. Falo do papel e do difícil que é, também à noite escrever em papel transparente. Vegetal.

 É noite e na noite todos se adormecem, em modos resistentes, pouco transparentes.

 Eu estou descalça. A esta hora revejo-me nas solas dos pés vincadas por dias que poderiam ter sido de outras formas e relevos.

Mas não há decreto nem lei que eu conheça que se pronuncie sobre este e outros temas.

Por precaução continuarei algumas horas descalça.

Não vou virar a página.

Uma sombra branca fará  luzir o cinzento irregular do lápis numa outra folha.

Insisto.

Não mudo de página.

O lápis falha. A caneta? Impossível.

Insisto: transparência.

Imagino-me sorridente estampada (e espantada, claro) num quadro da parede da sala. Faço sala aos vizinhos, aos que entram , aos que ficam e aos que se arrependem.

A tinta segue, tortuosa o seu caminho.

Café? Não, obrigada. Foi o que me respondi. Tinta.

Às vezes (xx) durmo. Viro-me e sem grande esforço durmo mais uma vez. Mas a noite continua a mesma e o dia, por vezes, também.

E repito: não é a esta hora que vou correr o risco de torcer o tornozelo. Decidi, vou continuar assim, descalça.

Errei a página.

Regresso.

A troca de tinta na escrita poderá ter sido uma ilusória sucessão de tons. O texto persegue as linhas, as páginas, as horas.

É por isso que às vezes nada parece servir para o que parece ter sido feito.

A mim, por exemplo, não me serve a roupa.

A roupa....ai, a roupa.

Essa e as outras esperam ao lado da tábua na esperança que um pensamento se transforme em algo bem mais necessário.

Eu....por falar em transparência.....há dias em que me sinto raiz.

Poderia sentir-me árvore, mas teria que especificar e seria já outra coisa bem diferente da que poderia ser.

Há dias destes em que palavras, acentos e palavras não se conjugam do modo que vou julgando mais perfeito.

Vou descalça?

É agosto, e o mais transparente será queimar a sola dos pés no alcatrão que nos leva quase a todo o lado.

Mais transparente?

Depois de agosto, se bem me lembro, é setembro.

E setembro ( transparente?)......redundante.

No mínimo, uma questão de estilo.

Catarina Fonseca 1917

 ( mais transparente seria entender o que é isto de o hoje ser amanhã e o amanhã ter sido hoje..

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