Que (um) DEUS me livre deles!
Mas que os há…
Espelhos grandes ou pequenos, redondos ou ovais, clássicos
ou modernos, de pendurar na parede ou perder na carteira. Espelhos confidentes
e infantis, de linhas modernas ou luxuosamente decorados, os espelhos, mais do
que simples objetos do quotidiano são o símbolo por excelência da beleza que
aprisiona e condena. Belezas construídas e renovadas ao sabor do tempo,
escravas desses guardiões dos sonhos mais secretos e dos sacrifícios mais
ousados. Obras de artes dignas dos mais afamados museus. Eu? Eu não gosto de
espelhos. Espelhos que (nos) aumentam ou diminuem, espelhos que nos fracionam e
invertem, mostrando realidades que nem sempre nos agradam. Credo! Deus me livre
dessa praga!
São bonitos sim, mas oferecem-me apenas reflexos do que
poderei ser, distanciando-se em muito da tão procurada essência. Os espelhos,
decididamente não mostram o que sou. Os espelhos mostram regressos e procuro
caminhos. Às vezes, os espelhos mostram mais do que procuro e isso incomoda. Se
incomoda… Minto, por vezes minto, mas só pelo prazer de fazer conversa. Eu
gosto de espelhos, mas não daqueles que querem dar sempre um passo mais à
frente ou teimam responder quando não tenho vontade de fazer conversa. Se forem
pequenos e se mostrarem o pormenor com a delicadeza que procuro, poderemos
pensar numa relação pacífica, mas há espelhos e espelhos. Espelhos para ver os
olhos, os lábios, o sorriso ou um sinal no pescoço. Espelhos para segurar com
as mãos que nos agarram ao mundo. Espelhos para ver se alguém nos segue. Os
espelhos que mais gosto são os das histórias infantis. Não saem dos livros e,
no fundo, mesmo que magoem as personagens, basta um virar de página e tudo
volta ao normal. Gosto desses espelhos, são inofensivos. Gosto de outros
espelhos, espelhos de água, espelhos de fruta…hmmm….frutas frescas, bonitas,
apetitosas. Eu? Sou vaidosa? Claro. Às vezes. Por vezes. Sou vaidosa, mas da
maioria dos espelhos, o que quero é mesmo distância.
Espelho meu, espelho meu…. haverá por aí alguém com mais
azar do que eu ? O quê? Nunca partiu um espelho? Sete anos de azar….é o que
dizem. Pouca sorte, melhor dizendo… Eu já parti um, e era dos grandes. Nem
sempre sou cautelosa. Poderia ser mais, talvez, mas isso agora não importa. Eu
queria ver o que estava do outro lado, mas a fantasia despedaçou-se. Foi
limpinho, não vi o que queria e ainda tive que pagar um espelho ao dono da
casa.
Mas afinal o que é que tanto procuramos nos espelhos? A
beleza dos pormenores, dos acabamentos, dos retoques nunca finais que só os
espelhos pequenos parecem mostrar? Eu vejo beleza num muro de pedra rugoso
coberto de musgo, no rosto enrugado de quem procura um raio de sol, no campo
verde florido na primavera e aí, não há espelhos. A beleza vejo-a na partilha,
na memória, no olhar disperso ou mesmo até quando ouço à noite, o coro dos
grilos, de olhos fechados.
Há quem procure beleza nas pessoas, mas há pessoas cuja
beleza é invisível e outras, confesso, indizível, pessoas que nada têm de
bonito. Pessoas sem olhos cristalinos, sem lábios de contornos finos e
delicados, sem cabelos sedosos. São pessoas bonitas, mas que nada têm de belo.
É isto. Pessoas que parecem fugir a todo e qualquer padrão de beleza. Pessoas
que encantam com o silêncio e com a palavra, pessoas que dão antes que se lhes
peça algo.
Eu não gosto (muito) de espelhos. Já disse, não é novidade.
A nossa relação é clara e bem resolvida. Será mesmo? Eu decido o que quero ver
e o espelho mostra. A ideia é que seja eu a ver o espelho e não o espelho a
ver-me a mim. Entendido? Eu mando, o espelho reflete. Apenas.
Tal como as ideias, não devem os espelhos correr atrás de
belezas fixas, dos padrões inevitáveis das modas fúteis e presas a equações
demasiado matemáticas. Tudo é passageiro. Todos queremos tudo, aqui, agora, e
se possível já. Queremos ser os primeiros, os melhores e os mais belos. E por
que não?
Não é isso que todos queremos? A beleza, a desejada e suada
beleza, desenhada e redesenhada, de contornos nem sempre claros, reflete não
tanto o que somos, mas na maioria das vezes o que desejamos parecer. Ser? Isso
é outra coisa. Ter? A beleza escorre-nos pelos dedos também maquilhados,
deixando escurecer sorrisos, enevoando olhares e ofuscando perseguidores
insaciáveis. Homens, mulheres, crianças. Gestos, poses, atitudes. Tudo se quer
belo, mas não apressado. Seguir a ordem, saber esperar, deixar florir no seu
tempo e apreciar calmamente. Não encenar demasiado.
Espelho meu, espelho meu !
Vivemos com pressa, muita pressa. Corremos desvairados atrás
do que não conseguimos viver antes como se fosse possível reconstruir o cenário
mais tarde e viver o que deveríamos ter vivido noutros palcos e com outros
enredos. Gastamos o tempo em ensaios e depois, o tempo que nos faz realmente
falta é o que menos temos de sobra. O antes, o agora e o já confundem-se e
confundem-nos. Nunca temos tempo. O tempo domina-nos como se fosse um grande
espelho capaz de mostrar tudo . Aqui. Agora. Já. Corremos atrás desses espelhos
como se tentássemos agarrar com as duas mãos todos os tempos: passado, presente
e futuro. Como passamos muito tempo ao espelho, o pouco tempo que nos resta é
para lamentar. E Viver? Viver…
Que ilusão!
Do tempo que dizemos não ter, desse que corrói a beleza que
procuramos manter em cativeiro para que
não corra o risco de se perder, temos apenas reflexos, imagens breves e
demasiado rotineiras. Ousamos a todo o custo preservar, congelar emoções quase
literalmente. Fotografamos, filmamos, escrevemos para encontrarmos tempo de
viver noutro tempo. Adiamos.Deixamos de ver nascer, florir e dar fruto, mas
estivemos lá, partilhámos a notícia, criticámos, contrariámos….fizemos esticar
as palavras e render as imagens, mas retirámos-lhe a beleza. Fora da época,
como a fruta ..bonita, brilhante, habilmente desenhada, acondicionada, mas sem
sabor…o que realmente importa. O aqui e o agora… Que luta!
Beleza rara? Talvez a única que vale a pena perseguir seja a
que acompanha o tempo com delicadeza, vendo a pele lisa e rosada encher-se de
rugas, o olhar descer à terra e ir de memória em memória, do sonho à realidade,
encontrando valor na diferença, na originalidade de cada um.
Querer ser e ter, o melhor, o mais belo, o mais vistoso,
eterno enquanto durar.
Beleza da ruína e da novidade, do feminino, do singular, do
coletivo.
Espelho meu, espelho meu…
Mas que os há…
As estações do ano são quatro e cada vez menos
precisas…Indefinidas no que toca ao rigor matemático das equações do
calendário, são belezas cada vez mais raras e que nenhum espelho poderá
refletir.
#pedrostoryteller- fotografia
Catarina Fonseca- texto