A bibliotecária tem a convicção de que o segredo para fazer
com que “as pessoas leiam mais e tenham mais apetência para a leitura é fazer
coisas fora do normal”.
“Nelas, nesse tempo,
era uma vila pobre, frente à Serra da Estrela e à casa dos meus avós,
continuada por uma vinha e cheia de castanheiros atrás e dos lados, tinha uma
varanda com uma vista deslumbrante para a Serra.”
António Lobo Antunes é natural de Lisboa, mas já em diversas
ocasiões disse e escreveu que o seu coração está na vila de Nelas, no distrito
de Viseu, o lugar onde viveu os tempos mais felizes da sua infância.
“Ele tem uma ligação
muito forte a Nelas, onde passava férias na infância e adolescência com os avós
maternos, que tinham cá uma casa”, contou-me Paula Vitória, diretora da
Biblioteca Municipal António Lobo Antunes, onde se realiza um trabalho contínuo
de divulgação da obra do escritor lisboeta.
Componente importantíssima desse trabalho é o percurso
literário, inaugurado em 2023, que convida a descobrir ou redescobrir a ligação
pessoal e literária de António Lobo Antunes à vila de Nelas. E escrevo
“redescobrir” porque é sobejamente conhecida a sua ligação a esta vila da Beira
Alta. Um exemplo: “Meu Deus o que me dói o meu país a arder! Na Beira Alta onde
está sepultada toda a alegria e toda a saudade da minha infância, ali diante da
Serra da Estrela, cercado de castanheiros na varanda da casa dos meus avós, em
que fui sempre inalteravelmente feliz no meio de ternura e sorrisos, a ver à
noite Manteigas a cintilar ao longe, a jantar na varanda enquanto o correio das
sete passava lá em baixo no vale.”, escreve António Lobo Antunes na crónica
intitulada “Que farei quando tudo arde”, uma das muitas que podemos ler em As
outras crónicas, o livro selecionado por Paula Vitória para a minha visita à
Biblioteca Municipal de Nelas.
O trajeto do percurso literário liga 14 locais, mencionados,
direta ou indiretamente, por António Lobo Antunes nas suas crónicas — são seis
os livros de crónicas do autor à disposição na biblioteca. “O percurso demora
cerca de duas horas a percorrer e está associado a uma aplicação que fornece
indicações, pelo que a ideia é ser realizado de forma autónoma. Em cada um dos
locais de paragem, as pessoas são convidadas a ler excertos. Para complementar
o percurso literário, inaugurámos este ano na biblioteca uma exposição de
fotografia intitulada ‘O Mundo de Lobo Antunes’, de Ana Carvalho, que é mais é
uma forma de convidar as pessoas a virem até nós e a conhecerem a vila e os
seus pontos mais interessantes”, explicou-me Paula Vitória.
A bibliotecária tem a convicção de que o segredo para fazer
com que “as pessoas leiam mais e tenham mais apetência para a leitura é fazer
coisas fora do normal para que o público se interesse pelos livros e pela
biblioteca e a visite”. E se não vier, perguntei. “Então, temos nós de ir ter
com as pessoas! As bibliotecas têm de ser um polo de dinamização cultural,
sobretudo nos meios mais pequenos”, acrescentou.
“Esta porta é mágica,
aqui entramos noutro mundo”, disse a bibliotecária, convidando-me a entrar na
Oficina do Óscar. Lá dentro, um mundo de cor e fantasia, com bonecos do tamanho
de gente, mesas e bancos, loiças, utensílios de cozinha, uma bancada de cozinha
móvel e um quadro, entre muitos, cuja mensagem me chama a atenção: “Tarefa do
dia: ser feliz.”
— É isto que se procura quando passamos aquela porta?
— Sem dúvida! —, exclamou Carlos Henrique, o animador do
espaço. — A ideia é que se entre com o espírito de viver este mundo de fantasia
e que se seja feliz!
— E o que se faz em concreto?
— Bom, aqui é a Oficina do Óscar, o Óscar é a nossa mascote,
como facilmente se percebe. E esta oficina serve para tudo e mais alguma coisa
de acordo com as temáticas que estamos a trabalhar. Tanto pode ser um espaço de
culinária, como ateliê de construção, de histórias, de escultura, de pintura, é
variável. Neste momento, é uma oficina que mistura showcooking com literatura,
animação, contos, histórias e invenções, ou seja, é uma fusão destas áreas
todas, em que o Óscar e os seus amigos, que são as crianças que cá vêm, vão
aprender que a arte de cozinhar tem muito de brincadeira, desafio e
aprendizagem.
— Nem vale a pena perguntar se gostam…
— Adoram, claro. Os miúdos vêm em grupo com a família e
todos metem as mãos na massa e elaboram cupcakes, bolachinhas, bolos, donuts
saudáveis, entre outras coisas.
Temos sempre cuidado com os ingredientes por causa das
intolerâncias, tudo é previamente falado com os professores, e se alguns dos
miúdos não puderem utilizar um ingrediente, utilizam outro para não se sentirem
excluídos. Aqui a ideia é incluir os alunos de todas as escolas do 1.º ciclo,
dos jardins de infância e as respetivas famílias. Queremos sobretudo que as
famílias venham com os filhos. E não há uma idade específica, depende das
atividades. Uma vez aqui, trabalham em grupos de quatro e cinco e todos têm uma
tarefa, que é para aprenderem a trabalhar em equipa, e depois comem aquilo que fizeram.
Se correr ligeiramente mal, paciência, comem na mesma o que fizeram enquanto
assistem a um espetáculo de marionetas ou ouvem histórias.
— E quem é que criou o Óscar?
— Fui eu. Eu construo cenários, marionetas, um pouco de tudo
para criar este mundo de fantasia. Ah, e todos conhecem o nosso lema.
— Eu ainda não…
— É assim: ‘Aqui na oficina do Óscar, todos arregaçamos as
mangas e pomos as mãos na… massa!’ É uma maravilha vê-los todos a gritar
‘massa’!
— Isto é só para miúdos e famílias?
— Não, também fazemos uma adaptação para o público sénior
que vem nas excursões visitar a vila de Nelas. Nesse caso, trazêmo-los à
oficina e servimos um brunch com produtos endógenos da região, como o pão, o
queijo da serra, o azeite, o mel e o vinho, e fazem a degustação enquanto
assistem a um espetáculo de poesia ou outra qualquer expressão artística mais
direcionada para adultos. É verdade que tudo isto é uma fusão um bocado maluca,
mas acho que tudo se encaixa perfeitamente.
À saída, reparo num outro cartaz: em cima, lê-se “A Oficina
do Óscar – Assim enchemos o coração de energia, saboreamos cada história e
reavivamos o prazer de estar à mesa com quem nos é importante”; logo abaixo,
“Ingredientes: 1 colher de sopa de Inovação, 1 caneca cheia de Criatividade, 1
boa pitada de Energia, 1 copo de Dinamismo, 1 cubo de Arte, 1 tigela cheia de
Expressividade, 1 embalagem de Sabor”; por fim, a preparação: “Junte todos os
ingredientes num espetáculo de fusão, meta as mãos e misture com diversão e
criatividade e, no final, desfrute na companhia de amigos e família!”
Que sorte a das crianças e jovens de Nelas por terem o Óscar
como amigo. Que momentos tão felizes vivem na biblioteca. Que belas memórias de
infância estão a construir. Palavra de patrono: “E foi em Nelas que passámos os
tempos mais felizes da nossa infância, recuperando das desgraças do inferno
polar da Praia das Maçãs e sem nenhuma vontade de regressarmos a Lisboa, cheia
de pinheiros, de amor, e da imensidade extraordinariamente bela da Serra. Eu, o
João, o Pedro e o Miguel, e pergunto-me por que maldade horrível nos tiraram
isto. Quer dizer não tiraram por completo. Neste momento, palavra de honra,
estou lá.”
Fonte – João da Silva (https://www.publico.pt/2024/07/15/impar/cronica/biblioteca-municipal-nelas-antonio-lobo-antunes-tarefa-dia-feliz-2095405)
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990