9/24/2024

Amarelo Silvestre


Há uma cantiga do Chico Buarque que, curiosamente, junta bem os dois temas dos Diários de uma República do ano passado, que ainda circula, e do do próximo ano, que começa a preparar-se agora. Na Construção de Buarque canta-se:

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico.

Não sabemos bem quantos tijolos é preciso empilhar para construir uma casa de 3060 metros quadrados, mas os desenhos e a poesia das mãos que os empilham são mágicos como se canta aqui. Ainda sobre a residência artística do Diário de uma República III, em Nelas, que aconteceu entre o dia 16 e até ontem, o Fernando Giestas, que esteve com o Nelson d'Aires, conta-nos tudo mais um par de notas sobre o que ouve sobre a habitação num país com tantas casas vazias e, ainda assim, tantas por erguer.

Notas de Campo II

A cara dele está por todo o lado.

Ele vive no Bairro dos Operários.

Eles fizeram marquises atrás da casa.

Ele abdicou do quintal para construir mais uma divisão da casa.

Ele diz que quer mudar o telhado da casa, para o ano, se ainda cá estiver.

Ele diz que a Câmara não devia ter autorizado a fazer esta obra.

Ele deixou a cama por fazer.

Ele diz que vai fazer o almoço.

As três filhas dele estudaram naquela escola que já não funciona.

Ela apanha medronhos.

A cara dele está por todo o lado.

Ele diz que acorda com os corações.

Ele diz aqueles “Vês” debaixo da janela são o “V” de vitória dos Aliados.

Os primos não se entendem e a casa está a ir abaixo.

Ele diz o meu avô comprava sempre dois móveis iguais.

O castelo que o pai fez está no quarto dele.

Ele trouxe o castelo para esta casa na mala do carro.

Ele mostrou-nos a contracapa do álbum dos Téléphone: 3 homens e 1 mulher nus. Os homens têm vulva em vez de falo. Cospe o teu veneno, assim se chama o álbum de 1979.

Ele deu-lhe um vinil dos The Kings e uma capa da Joni Mitchel.

Ela diz a casa estava desabitada e os jovens vinham para aqui partir vidros.

Estão a passar quatro canadairs.

A cara dele está por todo o lado.

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