MEMÓRIAS DE CANAS DE SENHORIM, com meio século, nas distantes, belas e quentes terras africanas.
Por variadas razões, muitos canenses por ali passaram e,
naqueles tempos em que amigos eram como familiares autênticos, os seus
reencontros eram acontecimentos jubilosos, inauditos.
O seu pensamento, num ápice, percorria milhares de
quilómetros, transportando-os ao rincão natal, às pessoas e locais que lhes
eram queridos que, perante eles, desfilavam como fossem reais. À medida que se
esvaziava o deposito das saudades, recarregavam-se as baterias do ânimo.
Andei, como militar, pelas proximidades do trópico de
capricórnio, em Moçambique, durante dois anos. A sorte bafejou-me com alguns
desses extraordinários momentos.
Um deles, pela sua imprevisibilidade, contexto e duração, é
inesquecível. Ocorreu por alturas do carnaval de 1973 e é o único de que tenho
imagens.
Seria o menos provável porque eu, com a comissão a
aproximar-se do fim, vislumbrando já o caminho para Lisboa, não contava, de
todo, abandonar a relativa segurança citadina. Muito menos esperava, como
elemento do exército, no distrito de Tete, encravado entre o Malawi, a então
Rodésia (hoje Zimbabué) e a Tanzânia, acompanhar a tropa operacional de elite
da força aérea vinda de Nacala, no distrito de Cabo Delgado, junto ao oceano
Índico, a mais de mil quilómetros de distância.
Na semana que antecedeu a deslocação para o local de destino, várias vezes visitei o aeroporto (aeródromo base 7-AB7), a meia dúzia de quilómetros da urbe, onde estacionaram os “boinas verdes” da primeira companhia do Batalhão de Caçadores Paraquedistas 32.
Não encontrei ninguém conhecido e foi com a maior das
surpresas que, no momento da partida, sobre a nova ponte que cruzava o rio
Zambeze, ao subir para uma das viaturas, encontro o Luís Henriques, (o Luís da
Belmira), o meu vizinho, amigo, companheiro de escola e das travessuras
infantis que não via há mais de três anos.
Difícil descrever tal momento. A nossa reação eufórica, que
deixou boquiabertos todos os presentes, prolongou-se num abraço que apenas
terminou quando os ossos pediram socorro.
Nos cerca de sessenta quilómetros que separavam Tete de
Temangau, onde estacionámos, transpostos em cerca de duas horas, apenas
conseguimos percorrer mentalmente, recordando pessoas e os locais das nossas
brincadeiras, o espaço entre o Pelourinho e o depósito das águas e fomos ao
café Rossio para lembrar o almoço dos apurados.
No acampamento, cercado de embondeiros e capim, eu faria a
ligação de todas as comunicações cifradas entre aquela unidade e as do exército
que operavam na zona e respetiva cadeia de comando. O Luís, já com dois terços
da comissão cumprida e invejável folha de serviços, naquela missão, ficou
dispensado das operações de assalto, ficando como controlador da produção e
distribuição do pão.
Podemos, assim, usufruir de alguns tempos livres que
aproveitámos para inolvidáveis convívios.
Mal raiava o dia, porque ali o sol castigava duramente
tornando insuportável a permanência dentro das tendas, encontrávamo-nos junto
ao forno e saboreávamos uns deliciosos pães quentes, com a manteiga a derreter,
e umas “manicas” ou “laurentinas” (marcas de cerveja).
Assim, à boleia da lembrança do pão de Canas a sair do forno, aqueles que nos acompanhavam, deliciavam-se a ouvir as nossas recordações e, nos quase trinta dias que permanecemos juntos, ficaram a conhecer a magnificência do nosso carnaval, dos bailes e festas da vila, as rivalidades Paço-Rossio e Fornos-Minas, o requintado sentido de humor da tia Belmira e da avó Ermelinda e muitas das suas ladainhas, as tradições das partidas carnavalescas e dos santos populares, o Prim e a burra do Camião.
Mesmo ao findar a missão, ainda tivemos um momento de alta
tensão com a notícia que um grupo inimigo armado se aproximava do acampamento.
A resposta enérgica e imediata, aumentou a minha admiração e respeito por
aquela tropa especial. Lembrou também o permanente perigo que corríamos e,
isso, tornou mais pesada a despedida.
Eu fiquei na poeirenta cidade donde partira. O Luís e toda a
companhia seguiram para o distrito de Manica onde, soube-o depois, perdeu
alguns companheiros.
Os votos da despedida, graças a Deus, concretizaram-se. No
Natal de 1973 já ambos estávamos em casa.
Desculpem maçar-vos. Não quis lembrar o tempo da guerra.
Apenas recordar as “Memórias de Canas de Senhorim” dum tempo em que não havia
as tecnologias de hoje para enquadrar e perpetuar estas imagens.
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