NOITE SILENCIOSA
As duas senhoras idosas iam distraídas, prestes a transpor a porta lateral da Igreja, quando uma delas travou o braço da outra, impedindo-a de prosseguir.
- Que é isso, Alzira? – Que é que se passa?
- Schh!!- Escuta!- Não estás a ouvir?
- Ambas prestaram melhor atenção aos sons que provinham do interior do templo, e que estiveram na origem da hesitação da Alzira. A sobrepor-se ao som do velho órgão que tão bem conheciam, ouvia-se distintamente o som de uma flauta que, passados momentos, se extinguiu.
- Olha…já acabaram...! – Não se ouve mais música!
- Iam a entrar de novo na Igreja, mas ouviram a voz do Padre Manuel, que se dirigia a alguém que, segundo entenderam, com ele ensaiava.
- Tens que esperar pelo órgão, João, não podes ir mais depressa do que eu, senão ficamos desafinados, compreendes?
- Sim, senhor Padre, mas como é a primeira vez que toco junto com alguém, preciso de um pouco mais de prática, e eu hoje não tenho mais tempo, tenho que levar as ovelhas para a serra, senão...se o meu Pai descobre...já sabe como elas “cantam”!
- O velho pároco sorriu com benevolência e enquanto passava a mão enrugada por sobre a cabeça do rapazito, foi dizendo; - eu compreendo, João, mas se o teu Pai não fosse tão casmurro, mandava-te era para uma escola de música, em vez de te mandar apascentar ovelhas para a serra!
- O miúdo sorriu com ar sonhador, e foi murmurando, enquanto saía pela porta da sacristia:- “aquele”, só por milagre é que muda de opinião, senhor Padre!, - e, dito isto, saíu, correndo, na direcção do curral, fora do povoado, onde a meia dúzia de ovelhas que a família possuía, o aguardava , ansiosa para se saciar na erva fresca e tenrinha que naquele altura do ano abundava por toda a encosta que se estendia até á zona escarpada onde a família possuía os terrenos de pasto.
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- Olhe lá, senhor abade, aquele miúdo não é o filho do... do... - Zé Mota, é sim senhora,- atalhou o Padre. – Porquê? – ele fez-lhe alguma?- Olhe, eu sei que ele é um bocadinho travesso, mas é um bom rapazinho!
- Qual quê?- não é nada disso! – É que nós vínhamos a entrar, e…- e ouviram o nosso ensaio, não é isso? – Pois posso dizer-vos que aquele miúdo, com toda a sua traquinice, é um grande artista! Ouviu uma música de Natal pela primeira vez há dois dias, e já é capaz de a tocar na flauta de cana, que faria se fosse num instrumento a valer!...
- As velhotas olharam-se em completa surpresa, murmurando:- e esta? Quem havia de dizer?
- Digo-vos eu, que estive a ensaiar com ele, - ajuntou rindo, o Padre; - e se Deus quiser, vai tocar aqui, com o organista, amanhã, na noite da Consoada!
- Bem, mas o que é que as traz por cá?
João, corria a bom correr, na esperança que o pai não tivesse dado pelo seu atraso. Apascentar as ovelhas era a sua obrigação quotidiana, logo após a saída da escola. Porém, o Padre Manuel tinha insistido que viesse ensaiar com ele logo que saísse, e aquela música tinha-o enfeitiçado de tal maneira, que, sempre que tinha um momento, levava a mão á sacola, e da sua flauta de cana começavam a sair os sons que aprendera tão depressa, que até lhe parecia um milagre!
Um chinfrim de balidos de vários tons, festejou a sua entrada. As “suas” ovelhas aguardavam ansiosamente a sua chegada, pois já passava da hora habitual para a libertação, e consequente pastagem, na erva fresca do caminho.
João dirigiu-se de imediato para onde se encontrava a “Môcha”, assim apelidada
por não lhe terem nascido os chifres que todas as outras ostentavam. Era a sua preferida, pela meiguice que sempre mostrou para com ele, seguindo-o para todo o lado desde pequenina. Agora a Môcha era mãe, pois tinha parido havia uma escassa semana, mas a cria já cabriolava por todo o lado, brincando com os outros borregos e sempre com vantagem nas correrias que entre todos encetavam e competiam. A cria estava deitada ao seu lado, mas assim que João se aproximou, ambas se levantaram de imediato e vieram lamber-lhe as mãos, seguindo-o, num sinal de reconhecimento afectuoso. Pelo caminho, João puxou da sua flauta, monte acima em direcção aos penhascos, para lá dos quais se estendia aquela espécie de promontório onde a erva formava um espesso tapete verde. Ali, não tinha que se preocupar em vigiar o seu parco rebanho. Não havia hortas, nem nada que as ovelhas pudessem danificar, por isso o João não tinha mais que deixá-las comer livremente, enquanto se sentava em qualquer pedra e, anichado da melhor maneira, aproveitava para fazer os trabalhos de casa . De vez em quando erguia os olhos para verificar se tudo corria bem e logo voltava de novo a sua atenção para os livros e cadernos.
Naquele dia, decidira ficar até um bocadinho mais tarde, para compensar o tempo que demorara no ensaio com o Padre Manuel. O entardecer foi rápido, e quando deu por si, o João ficou alarmado. Era quase noite e ele ainda estava no cimo do monte a uma considerável distância do povoado. Já sabia, o Pai ia ralhar com ele, talvez até dar-lhe um tabefe por chegar tão tarde.
Pegou nas coisas á pressa e iniciou o regresso, com as ovelhas, obedientemente atrás de si. - De repente, parou! – Tinha a sensação de que algo não estava bem. -A Môcha !
- Onde estava a “Môcha,” que não se lembrava de a ter visto, nem á cria, quando deixara a pastagem! – Sem pensar duas vezes, deixou que as outras seguissem o seu caminho e voltou para trás a correr, já aflito. Chegado ao local onde estivera, circundou a vista, mas…da Môcha e da cria, nem sinal!
- Chamou, em altos brados pela ovelha tresmalhada, mas não obteve qualquer reacção. Procurou por detrás dos penhascos, nas fendas, mas…nada! Entretanto, o Sol escondera-se no horizonte e o crepúsculo começava a esconder os contornos dos penhascos, enquanto o entardecer trazia consigo um friozinho cortante, próprio daquele mês de Dezembro. Sentiu um arrepio, porque não tinha vindo prevenido para ficar na serra até aquela hora, mas...não podia deixar a Môcha e a cria para trás, com tantos lobos esfaimados, que, mal caía a noite, saíam das suas tocas para dizimar tudo o que lhes saía ao caminho. Voltou a chamar, cada vez mais alto, e, ao dar a volta a um penhasco, pareceu-lhe ver uma sombra furtiva que se escondia, talvez para atacar logo que as condições lhe fossem favoráveis. Para ter a certeza, João pegou numa pedra e atirou-a na direcção de onde o vulto desaparecera. Com horror, viu os seus receios confirmados. -
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Um lobo!- murmurou para consigo. - Depois, notou, angustiado que tinha o focinho ensanguentado. – A “Môcha!- se calhar matou a “Môcha” e a cria! -pensou angustiado. Como o lobo se afastara momentaneamente da sua vista, resolveu investigar o sítio de onde o lobo surgira. – Um brado de desespero saiu-lhe do peito, ao ver os dois animais metidos numa estreita fenda, o focinho da ovelha ensanguentado, assim como o pelo da cria tingido de sangue. Correu para a ovelha e lançou-lhe os braços ao pescoço, enquanto amaldiçoava a fera. Depois, com imenso cuidado examinou o focinho do animal. Para grande surpresa sua, esta tinha apenas um arranhão fundo, mas era a sua testa sem cornos que mais ensanguentada estava. João procurou, mas não encontrou ferida alguma. De – repente, fez-se luz no seu espírito! O sangue, no focinho do lobo teria sido causado pelas marradas da “Môcha”, que, muito provavelmente lutara para defender a sua cria. Metida naquela estreita fenda, deveria ter esperado o ataque da fera para o atacar, protegida pelas paredes laterais da mesma, e conseguira afastá-lo á marrada! Era provável que acabasse por sucumbir, mas o chamamento do João alarmara o lobo que optara pela fuga.
Anoitecera. – João não sabia que decisão tomar. Uma coisa era certa. Não podia aventurar-se com a ovelha e a cria serra abaixo, pois era certo e sabido que seria atacado e desta vez, por mais que um lobo. – Eles virão procurar-me!-pensou. E com este pensamento, sentou - se no chão.
Zé Mota, viu as ovelhas chegar, dirigindo-se ao curral, mas João não estava com elas. Pensou que se teria atrasado ligeiramente, pois também ele notou a falta dos dois animais. – Atrasou-se por causa delas, de certeza,- murmurou consigo mesmo. Mas, quando o tempo de espera lhe pareceu demasiado longo, resolveu subir a um arreto e prescutou o caminho. Á luz difusa do princípio da noite, não conseguiu vislumbrar qualquer vulto que se aproximasse e começou a ficar inquieto e preocupado. Esperou o que lhe pareceu uma eternidade, e como João não aparecesse, resolveu dar o alarme.
Quim, - vai depressa á Igreja e conta ao senhor Padre Manuel que o João está perdido na serra. Anda, vai depressa!
O toque da sineta do Campanário, fez acorrer dezenas à Igreja. O Padre Manuel já estava á espera, munido com um gasómetro e conforme foram chegando, foi dando instruções. “Tragam gasómetros das vossas casas, agasalhem-se, e voltem aqui.”- “ Não podemos deixar o miúdo numa serra cheia de lobos, durante uma noite inteira”!
Foram avançando serra acima, chamando de vez em quando, mas, não obtinham resposta. Cada qual com o seu gasómetro, devidamente espaçados, iam avançando, tentando evitar as fendas e as gargantas que poderiam tornar-se em armadilhas mortais. Conforme o tempo ia passando sem nada suceder, Zé Mota começou a dar sinais de desespero. “Meu rico filho”!, - dizia ele ao Padre Manuel, que seguia a seu lado.-“ Que é que lhe terá sucedido”?- Calma, seu Zé. O João é esperto e não se arriscaria a ser comido por um lobo! Possivelmente estará metido nalgum buraco e não nos ouve! – Estou certo que vamos encontrá-lo! –“ Deus o oiça”!-“ Mas…começo a perder a esperança de o encontrar vivo”, -lamentava-se o pobre pai em desespero. E dispunha-se de novo a gritar pelo nome do filho, quando o Padre Manuel o deteve.- Espere!- Não fale agora! – Pareceu-me ouvir algo, como um toque de flauta! -“Não pode ser”!-retrucou o Zé Mota entre incrédulo e esperançado. – Ouça! -repetiu o Padre Manuel.
E ambos, como que fascinados, começaram a ouvir como se viesse das entranhas da terra, uma estranha melodia, entoada por uma flauta de cana que o padre imediatamente reconheceu. – Noite Silenciosa!- murmurou o padre. – é a flauta do João! -gritou com alegria. -Venham!- venham! -encontrámo-lo! - Gritava o Padre Manuel no auge do entusiasmo. E todos acorreram, dirigindo-se ao local de onde emanava aquela música suave. Guiados por ela, não lhes foi difícil chegar á entrada daquela espécie de gruta onde João se protegera. A “Môcha e a cria, estavam deitadas a seu lado, aquecendo-o com o seu calor. O Padre fez sinal para que avançassem silenciosamente, e a um sinal seu, entoaram em coro aquela melodia, dando graças a Deus porque o João estava são e salvo , junto das suas duas ovelhas preferidas.
Na noite seguinte, com a Igreja cheia, Alzira e Ermelinda limpavam os olhos cheios de comoção. E a sua voz juntou-se á de todos os fieis, acompanhando o velho órgão, acima do qual se elevava o som de uma flauta de cana, tocada por um pequeno e talentoso traquinas. No altar, o Padre Manuel enxugou disfarçadamente a humidade súbita dos seus olhos, enquanto ouvia deliciado os acordes daquela “Noite Silenciosa”!
Por João Rosa Pinto

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