quarta-feira 17 2025

Achegas para a História da Vila de Canas de Senhorim - II


Os Bens Imóveis da Junta de Paróquia no último quartel de Oitocentos

 

 

                Dos escassos documentos, preciosos para a história local, no tocante ao século XIX, que dormem nos arquivos da Junta de Freguesia de Canas de Senhorim, topa-se, entre eles, um intitulado Auto de Inventário1, já deteriorado pela humidade.

                O manuscrito, de quatro páginas, que agora vem a lume, mostra os bens imóveis na fruição da paróquia no ano de 1879, arrolados pela Junta por «conhecimento próprio e por informes de várias pessoas». Contém dezanove propriedades, dispostas por ordem numérica. A última do rol, um prazo enfitêutico2, rendia à paróquia 1$200 (mil e duzentos réis) de foro anual. As restantes, terras aráveis e estéreis, algumas daquelas sombreadas de olivedos, tidas por “testamentos” e doações, e a Igreja Matriz3, com o seu adro e a sua quelha, foram avaliadas, ao todo, em 2 110$200, isto é, dois contos cento e dez mil e duzentos réis.

                Desconhece-se, por falta de elementos documentais, em que anos, anteriores à data atrás citada, a Junta de Paróquia atombou todos os seus bens de raiz. Mas, pelos recursos utilizados para a feitura do presente inventário, depreende-se a falta de tombo patrimonial organizado. E é de crer, do mesmo modo, que, no vinténio subsequente, até ao fim da centúria, os eventuais arrolamentos dos seus pertences figurem em documentos avulsos e dispersos. Isto, porque na documentação até hoje compulsada nos sobreditos arquivos nada mais se colhe a tal respeito.

                No inventário em apreciação, verifica-se que, em data imprecisa, o mesmo serviu para o registo de actualização dos bens. Riscados e anotados contam-se nove prédios rústicos. Seguimos a numeração destes, expressa no inventário. Assim, nos números cinco, sete, oito, dez, catorze, dezassete e dezoito foi aposta, em cada um, uma cruz aspada. No número dezanove, sobrepuseram-lhe um traço oblíquo e registaram: «veija-se (sic) a acta de 16 de Maio de 1880». Ainda no número cinco, na margem direita, pode ler-se: «vendido». E no número dez, na parte superior, consta, também, a seguinte nota: «vendido em parte».

                Oito anos após ter levado a efeito o Auto de Inventário, em 1887, a Junta de Paróquia trazia arrendadas apenas «duas sortes de terra com oliveiras»4, das quais arrecadava a quantia de 5$000 réis anuais. E, passados sete anos, em 1894, na arrendação, restava «uma sorte de terra»5, que lhe provia, de receita anual, quatrocentos réis.

Dados recolhidos ocasionalmente, também no espólio documental da Junta de Freguesia, em folhas desconjuntadas de manuscritos e datadas da primeira metade do século XIX, dão-nos a conhecer alguns dos sítios onde se implantavam as suas pertenças.

Assim, sabe-se, através das actas das sessões da Junta, lavradas no último lustro dos anos 30, da cedência de pinheiros da mata da Cumieira6, da venda de «humas oliveiras que eraõ do Santifsimo»7 do olival do Torgal e de cinco pinheiros do «Quarto, no caminho que vae do Cadavaio ao Paimouro»8, a oitenta réis cada. E conhece-se também,  registada, mais tarde, no ano de 1850, na “coluna” de receitas do Livro de Contas, a verba de duzentos e quarenta réis provenientes de «foro do terrado da capela de São Bartolomeu».

Deste período, são poucos os poisos assim como os documentos. E estes, por desdita, estão longe de satisfazer o nosso desejo de saber a porção de bens, afora a trasteria, que a paróquia possuía.

Nos manuscritos disponíveis, do terceiro quartel de Oitocentos, acerca do que se procura, nada consta.

Resta dizer que um dos promotores e subscritores deste inventário era o pároco encomendado9 José Pais Tavares e que o mesmo inventário fornece, também, elementos apreciáveis para o estudo da toponímia local.

                A seguir se apresenta a transcrição integral do manuscrito em apreço, para constar. A ortografia e pontuação originais foram respeitadas.

 

 

Aucto de Inventario

Anno de Nascimento de nosso senhor Jezus Christo de mil oito centos e setenta e nove, aos vinte e seis dias do mez de Outubro, na sala das sessõens da Juncta de Parochia, da freguezia de Cannas de Senhorim, em sessaõ extraordinaria se reuniram o Presidente, e Vogaes da Juncta abaixo assignados, para procederem ao Inventario dos bens parochiaes, como consta das cartas de convocação, que elle Presidente dirijio a todos os dignos Membros, Parocho, e Regedor, e depois de lavrarem a competente acta, principiaram em Visturia, examinando todos os bens que por conhecimento proprio, e por enformes de varias pessoas, pertencem a dita Parochia, as quaes vaõ ser descriptas pela forma seguinte:

N.º 1 :

Huma sorte de terra d’hórta sita ao Carvalho, lemite de Cannas, parte do Nascente com Manoel Borges Mendes, Poente com Antonio Pinto, da Povoa, Norte com Antonio Pinto de Figueiredo, e Irmãns, Sul, com estes, no valor de 5$000

N.º 2 :

Huma sorte de Olival sita ao Cimo do Paço, parte do Poente, com Manoel Borges, Sul, com Herdeiros de Joaõ de Amaral, Norte, Herdeiros da Anna da Perpetua, Nascente, com Joze Caetano dos Reis, no valor de 12$000

N.º 3 :

Uma sorte de Oliveiras aos Curraes, parte do poente e norte com o caminho publico, sul com herdeiros de Barros de Lisei, nascente com Rui Lopez, de Sanctar, no valor de reis 10$000

N.º 4 :

Uma sorte de terra sita ao Zambugeiro, parte do norte e nascente com D. Anna Paes, sul e poente com os caminhos publicos, no valor 9$000

N.º 5 :

Uma sorte de terrado em que estaõ oliveiras, que naõ pertencem á Parochia, sita á Poça do Rocio, parte do sul e nascente com Antonio d’Abreu, poente com Diogo Joaõ Mendes e outros, norte com o caminho publico, no valor de 12$000

N.º 6 :

Um terrado sito á Praça, na Rua Direita de Cannas, no qual está assente o banco do Ferrador, no valor de 0$200

N.º 7 :

Um terreno e laejas no Rocio de baexo, que parte do nascente com Joaquim Borges e outros, norte com Joze Alexandre e outros, sul com cazas de Joaõ Paes Alexandre, poente caminho publico, no valor 6$000

N.º 8 :

Mais um terreno sito á fonte das Moitas, em que se acham situados indevidamente alguns predios com oliveiras que naõ pertencem á Parochia, parte do sul com o caminho da Laja da Pereira á fonte das Moitas, nascente com herdeiros de Lourenço Ignacio e outros, norte com caminhos publicos, poente com herdeiros de Joaõ Marquez Maltez, no valor de 3$000

N.º 9 :

Um terreiro sito ás laejas de Abril com laejas, que parte do nascente com D. Clara Maria Emgelica, de Viseu, poente com herdeiros de Antonio Marquez da Rocha, sul com Antonio Joze Coelho, norte com herdeiros de Joze Marquez de Oliveira, no valor 12$000

N.º 10 :

Um terreno sito á Fonsequinha, parte do nascente com Jose Lopez Cinta, poente com o caminho publico, norte Ancelmo Antunez, e outros, e do sul com Maria Pinta, no valor de 4$000

N.º 11 :

Um terrado sito ás paredes, que parte do nascente com Sebastiaõ Marquez Pereira, digo um terrado sito no Rocio de Baexo, parte do nascente e sul e poente com caminhos publicos, norte com caza de Antonio Borges, Viuvo, e outros, no valor 1$000

N.º 12 :

A Igreja Matriz com seu adro em roda, parte do nascente com D. Clara Maria Emgelica, de Viseu, sul com Antonio d’Abreu, poente com o caminho publico, norte com o caminho publico, no valor de 2.000$000

N.º 13 :

Uma rua denominada a quelha da Igreja, no valor de 6$000

N. º 14 :

Um terrado sito no Rocio de Cima, parte do nascente com terreiro e caminho Municipal, poente com Maxemino Fernandez, norte com Joaquim Borges, e sul com herdeiros de Joze da Roza, no valor 2$000

N. º 15 :

Um terrado no mesmo lemite do Rocio de Cima, parte do nascente e norte com terreiro e caminho Municipal, poente com Joaõ Ribeiro, sul com Joaquim Borges, no valor 3$000

N. º 16 :

Uma lage sita ao Rocio de Cima, parte do nascente com a Rua publica, norte com senhorinha Augusta, sul com D. Anna Paes, poente com Julia Larangeira, no valor de 1$000

N. º 17 :

Outro terreno sito ao Rocio de baixo, que parte do Nascente com Anna da Cunha Russa, norte com as cazas de Joaquim Marques Pereira e outros, sul com o caminho vecinal, e poente com Antonio Dias e outros, no valor 20$000

N. º 18 :

Outro terreno sito ao mesmo Rocio de baexo, parte do norte com Joze da Costa Ministro, e outros, nascente com herdeiros de Antonio Alexandre Paes, sul com herdeiros de Joaõ do Amaral, poente com o caminho publico, no valor de 4$000

N. º 19 :

U dominio directo de que é, digo de um prazo de que é efiteuta (sic) Rui Lopez de Souza Alvim, de Sanctar, que paga a esta Parochia  1$200

 

E naõ havendo n’este acto algum conhecimento de mais bens, n’este lemite de Cannas de Senhorim, elle Presidente mandou reteficar o presente inventario sendo lido em voz alta perante todos os menbros abaixo assignados, e conhecendo-se que estava conforme, e não havendo reclamaçaõ alguma n’este acto, foi por unanimidade aprovado, e por todos os membros devidamente assignados. E eu Joaõ Paes Pessoa secretario o escrevi.

O Presidente a) Antonio Paes da Cunha Pinto

a) Joaõ Marques Pinto

a) Sebastiaõ Marques Pereira

a) Adelino Correia

a) Joaõ Paes Vieira

O Encomendado a) Jose Paes Tavares

 

 

 

Notas:

1.   Deste documento conservo fotocópia facultada pelo ex-Presidente da Junta de Freguesia, Fernando Gomes Pinto.

2.   Terra constituída em enfiteuse. A enfiteuse, emprazamento ou aforamento é o contrato, verbal ou escrito, entre o senhorio de um prédio e outrem, o enfiteuta ou foreiro, em que este, mediante o pagamento anual do foro, toma o domínio útil do prédio e tem como direitos, entre outros, o de o usar e fruir como coisa sua e, até, o de remir o foro.

3.   A igreja de S. Salvador foi classificada como Imóvel de Interesse Público, pelo Decreto n.º 129/77, de 29 de Setembro, publicado no Diário da República, I série, n.º 226, da mesma data.

4.   in Orçamento ordinario da Junta de parochia da Freguesia de Cannas de Senhorim para o Anno1887.

5.   in Contas da Gerencia da Junta de Parochia de Cannas de Senhorim do anno de 1894.

6.   «...a Junta aotorizaõ (...) o corte de dois pinheiros para aobra na cappela de S. Joaõ das Lameiras de Valledemd.os (...) na Cumieira do lado de Valledemadeiros...». Acta da Junta da Parochia de Cannas de Senhorim, de 22.01.1837.

7.   Acta da Junta de Parochia de Cannas de Senhorim, de 24.06.1838.

8.   Acta da Junta de Parochia de Cannas de Senhorim, de 29.09.1839.

9.   «Quando um clérigo era apresentado [pela Coroa], submetia-se a concurso público, sendo o exame feito, perante três examinadores sinodais. Conseguida a aprovação, vinha, perante o bispo, que lhe impunha o barrete eclesiástico, após ter feito a profissão de fé. Chamava-se, então, pároco colado. Se não tivesse havido apresentação, dizia-se pároco encomendado.»  - Pe. Aires de Amorim, in A Voz de Esmoriz, de 15.12.1984: Para a história de Esmoriz - Monografia de Esmoriz.

 

 

Canas de Senhorim, Outubro de 2002.

 

António José Cardoso de Oliveira

 

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